sexta-feira, 18 de março de 2011

UM DIA DE CÃO

                Existem momentos que sufocamos dentro de nós como se fossem meros equívocos. A vida não é constituída de apenas um dia após o outro, um amanhecer ou um anoitecer, mas de liberações plena de uma consciência de existir no mundo. Meditações, as vezes se faz necessário para que possamos suportar estágios de vidas que nos deixam infelizes. A mente e a inteligência vivem de mãos dadas nos conduzindo a teorias sobre nossa meta existencial, procurando nos dar um pouco de felicidade nessa efêmera existência. Diz Joseph Conrad “o espirito de um homem é capaz de tudo, porque tudo está nele, todo o passado e todo o futuro, como nosso presente”. O que Conrad admite é que existe uma determinação das coisas que estão para acontecer, assim sensações de amor, solidão, saudade estão pré-determinadas de alguma forma no espirito, e ele tem consciência de todos os acontecimentos, passado, presente e futuro.
                Para muitos é típico dizer que todo o futuro é perigoso, se avançamos demais, julgamos que jamais nos adaptaremos, imaginamos que nossos sentidos são por demais arcaicos para nossa existência. Pessoalmente tenho visto crianças e jovens demasiadamente cansadas para viver, caminhando na ociosidade,  empurrando a própria vida, que muitas vezes chego a pensar que eles não existem. Por causa disso me pego numa imbatível elucubrações sobre o sentido real da vida. Muitas vezes fico impressionado por imaginar que ela não tem sentido real, e como um rato procuro um motivo obvio para a sobrevivência da raça humana e particularmente a minha vida.
               Através da janela do meu quarto, posso ver os carros num continuo movimento, o CD de Maria Bethania em cima da estante, expõe sua foto, ela tem traços fortes, coesa, capaz de se fazer penetrar nos mais puro dos corações, com sua voz inconfundível e eloqüente. Temos necessidade de ouvir palavras fortes através da musica, pois somos homens cépticos, que vivem se empurrando uns contra os outros, numa luta imbatível contra o inevitável: a morte.
               Velhos marinheiros como eu, que não tem família, destino, referencial para chegar, para expor-se ao outro, sente a liberdade plena, somos livres individualmente, não numa liberdade inventada, destituída de destinos, somos seres que não se acomodam, buscam seus objetivos, embora pareça ao contrario aos olhos dos outros, que nossas roupas ou maneira de ser demonstrem que não conseguimos bens materiais, que tão comumente somos obrigados a buscar. Nossa liberdade estar pautada nas virtudes da paciência, do amor, da abnegação e da humildade, é isso que denominamos de bem maior. E o desenvolvimento dessas virtudes é que nos leva para a conquista desses bens espirituais, o verdadeiro bem na vida. 
                O transito barulhento, o vai e vem das multidões que caminha sem destino, um casal de namorados trocando caricias mais intimas no jardim da praça, um velho cego a mendigar,  visto daqui de cima do meu quarto, mostrava-me a diversidade humana em meu campo de visão.Velhos Marinheiros, como eu, até arriscam ser cristão, aquele velho cego, com certeza tem algo parecido comigo, ambos viviam sós e desprovidos de bens materiais.   
               Desci a escadas do prédio onde residia, em menos de meia hora estava em frente ao porto, estava com muita fome. Aristeus, outro velho marinheiro o chamou, ele varria o velho barco Juaguarema, que parecia cair aos pedaços, obedecendo ao chamado caminhou ao encontro do velho amigo e daquela banheira o qual chamava de barco. Na cozinha do barco o velho Aristeus dividiu sua comida, que nada mais era um pouco de arroz com sardinha e tomate. A pinga acompanhava a charuteada antes de ingerir qualquer comida, aquele velho fazia disso um hábito. Seu charuto era o melhor do porto, ele os contrabandeava diretamente de Havana, negocio antigo que o sustentava. Sempre que vinha a esta cidade e a esse porto, ia vê-lo, conversavam bastante, e sempre que podia dava-lhe conselhos para que abandonasse o contrabando, entretanto ele sempre dava uma desculpa esfarrapda e continuava na mesma vida. Naquele momento, vendo aquele velho sentiu medo de um dia acabar como ele. Seu jeito relaxado, sua barba branca, seus olhos azuis e uma barriga imensa que lembrava papai noel. 
-         Amanhã, irei levar a muamba até o velho cais, estou precisando de homem para o serviço, então pensei em você. Sei que andas duro, o dinheiro das férias já se foi, e ainda falta muito tempo para o recebimento de um novo salário, além de tudo  você conhece a transação, já fez isso outras vezes. Será uma ótima oportunidade, e você tira essa barriga da miséria até o próximo salário. Topas? O que achas da proposta?
-         Não sei não, tudo é muito perigoso. Ainda tem o problema da mercadoria, não sei se é perigosa.
-         Nada de tão perigoso. São perfumes, charutos e dez quilos de maconha. Aceita cara, vai ser mamata.
-         Estar certo, vou te ajudar.
- O.k., então nos encontramos as 23 horas no velho cais
         Deixei aquele barco, com uma preocupação, talvez seria melhor desistir de todo esse jogo sujo, pela primeira vez iria trabalhar de forma desonesta, conhecia o mercado porque sempre observava e tinha amigos que participavam de falcatruas, e sempre que era convidado mas resistia, agora entretanto não sabia ao certo porque tinha aceitado, iria ferir os seus valores morais, mas sentia-se momentaneamente atraído pela aventura de um suposto perigo. Realmente o velho em certo ponto estava certo, seu dinheiro tinha acabado, e como iria sobreviver por mais de um mês? Um biscate no porto é quase impossível, principalmente na sua idade, já não tinha o físico adequado, a sua musculatura já não era a mesma. Era preciso arriscar, e se a grana fosse muito boa, poderia pensar em economizar e quem sabe no futuro, montar algum negocio que o pudesse mais tarde com a aposentadoria sobreviver adequadamente .
            Aquela noite estava estrelada, o porto enfumaçado, com um nevoeiro a mostra que dava-lhe um aspecto sinistro, de terror e morte. Alguns marinheiros jogavam cartas perto de um boteco, ao longe ouvia-se musicas como Jazz e Blues. O velho Aristeus fumava seu charuto, parecia um tanto apreensivo, olhava insistentemente o relógio. A velha banheira com o motor ligado esperava pela minha presença, era necessário dois homens para o trabalho, por se tratar de uma grande encomenda, muita mercadoria, mas a grana maior vinha do trafico da maconha. O Juaguarema navegava até um pequeno Iate distante na costa. Aristeus com seu charuto vez por outra dava uma baforada, observava o movimento no porto, que ficava cada vez mais distante. Ao leme eu, velho marinheiro, fazia minha lição perfeitamente, navegava com aquela banheira velha, temendo que aquela aventura acabasse mau. A luz que vinha do Iate iluminava o mar a medida que  aproximavam-nos, podia-se ouvir o som das ondas a debater-se no casco do barco. Alguns homens esperavam na proa e assobiavam uma velha canção do mar. Um homem alto com enorme bigode, parecia ser o chefe, falava alto dando algumas ordens.
       -         Trouxeram a mercadoria?
                       Gritou Aristeus, jogando a corda para que os homens pudesse amarra-la em algum lugar. O homem respondeu positivamente, mas era necessário ir até o chefe que esperava na ponta da costa numa ilha, e ele queria com urgência. Num mesmo instante alguns homens transportavam com facilidade toda aquela mercadoria para o velho barco, nos olhavam desconfiados, com se tivessem certeza que poderíamos denunciá-los. Entretanto estava eu, tornando-me um igual a eles, mas que o destino e minha opção tinha mudado todo o percurso de minha vida, mas havia certa confiabilidade, mesmo porque estávamos na mesma situação, encrencados. Repentinamente lembrei-me de Carlito, era um jovem amigo, que me chamava de guru, pela maneira como vivia e como falava sobre a vida, um belo guru tinha me tornado, metido com contrabandistas. Como poderia me designar espiritualista, esotérico, capaz da meditação que sempre preenchia minha vida existencial? Como poderia encarar-me, podia até parecer fisicamente com um guru, mas ser, era algo agora impossível. Diziam que a meditação é algo capaz de tornar o ser muito supremo, que pode-se chegar até Deus, muito facilmente, agora eu tinha a impressão que não conhecia a mim mesmo, ali surgira um eu diferenciado, capaz de fazer o mau, como se uma nova personalidade se apropriasse do meu corpo, e que eu não a conhecia.
                   O barco Juaguarema seguia agora ao seu destino, algum ponto de uma ilha, um desconhecido esperava por sua carga e com ordens para o seu destino final. Aristeus parecia contente, feliz da vida que levava, parecia ser a primeira operação sem grandes problemas ou complicações, cantarolava uma musica e vez por outra falava do suposto chefe ao qual íamos ao encontro daqui aproximadamente umas duas horas. Meu coração apertava a cada minuto que o tempo passava, parecia que não conseguia chegar até o fim daquela história.
  -         Então, velho amigo, amanhã terás um bom dinheiro para gastar e guardar se quiseres.
-         Você nem imagina como estou arrependido, nunca imaginei que pudesse a cometer esse erro. Logo eu cheio de valores.
-         Não se recrimine amigo, o que estar feito estar feito, mas convenhamos você precisava de ação e de dinheiro na sua vida, de mais a mais será apenas uma vez, e pronto. Não se puna.
-         Esse é meu medo, que seja apenas uma febre inconseqüente, e Deus queira que não se torne um hábito, e sinceramente já espero que Deus me perdoe pelo pequeno deslise, pois eu mesmo já havia me condenado.                                                                                      
                 A ilha parecia deserta, o barco ancorou e o Aristeus pediu sua ajuda para descarregar a muamba, o estranho era que na praia não havia sinal de uma viva alma, aquilo de certo modo me inquietou, mas descarregamos toda a mercadoria na areia, e o velho amigo saiu com sua lanterna na mão a procura de alguém, emitindo um código através da sua lanterna, expressando  nessa linguagem que tudo estava bem aos contrabandistas. Silêncio total, aquilo cada vez mais inquietava-me, a ilha parecia totalmente deserta, insistentemente Aristeus continuava emitindo seus sinais luminosos, deu alguns passos, quando ouviu uma voz firme, que gritou bem alto:
-         O Sr. estar preso, é a policia. Não tente nada precipitado.

                 Ao ver aquela cena à distancia, imaginei do que se tratava, rapidamente corri para o barco e liguei o motor, distanciando-me da praia, naquele momento só pensava em salvar  a minha pele, ouvi ao longe som de tiros disparados, e vi alguém correndo na praia, não  podia ter certeza, mas parecia o velho amigo e logo em seguida  o corpo caia ao chão. Entretanto imaginava que tudo aquilo  fosse um sonho e que o velho amigo estaria em algum lugar a salvo. Daqui a pouco estaria a salvo no porto, e toda aquela aventura seria um fato do passado, dando-me a certeza definitivamente que o crime não compensa, prometia a mim que este seria o ultimo ato indigno que cometeria, e amanhã  sairia pelas ruas, veria as vitrines, olharia as mulheres bonitas, minha liberdade estava preservada. O que não conseguiria esquecer seria o rosto do velho Aristeus e seu triste fim.